INFINÍNFIMOS

Ensaio I - Allen Ginsberg

A tradução feita por Leonardo Fróes para a Sutra do Girassol de Ginsberg me puxou pelos ipês dos pés desde o primeiro instante & me enfiou plantado nas mesmas redes das raízes de aço em que o bardo  sentou-se para ver as flores & as ladeiras & as locomotivas malucas de San Francisco que apitam & engasgam com suas próprias cinzas

e o cinzento girassol se equilibrando ao sol-posto, desmanchando-se abatido na invasão da fuligem, da fumaça, do pó de velhas locomotivas no olho - corola e também coroa com as pontas amassadas virando, com sementes despencando do rosto, rompendo em breves dentes um dia claro, raios de sol grudando em seu cabelo riscado como uma exangue teia de aranha de arame; caule com braços-folhas jogados, os gestos da raiz de serragem, pedaços de reboco minando nos galinhos queimados e uma mosca estagnada no ouvido, você de fato era uma incrível coisa imprestável, ó meu girassol minha alma, e como eu te amei então!

& como não amar esse girassol imprestável, seu olho-corola & também coroa procurando o sol entre penicos, pneus & camisas de venus; esse girassol esquecido na metrópole, subúrbio & todas essas flores mínimas esquecidas em quintais abandonados; girassóis que brotam das fissuras do asfalto como frágeis e luminescentes fagulhas da nossa imbecilidade cotidiana, bem no meio da nossa urbana & mítica cegueira ou nosso

falo ou tumor mortiço do imundo motor moderno industrificial disso tudo, o bafo da civilização poluindo tua coroa muito louca de ouro - esses turvos pensamentos de morte, a grande falta de amor em fins e olhos tapados, raízes abafadas em areia e serragem, os dólares raspantes elásticos, o couro das máquinas, as tripas enroscadas de um carente carro que tosse, as solitárias latas baratas com línguas rotas de fora, e o que mais seja, a cinza que escorre pela boca na ereção de um charuto, a boceta de um carrinho de mão, ou os seios acesos de viaturas lácteas, o rabo gasto que as cadeiras expelem, o esfíncter dos dínamos...

Metáforas e aliterações tão velozes quanto o tráfego das highways americanas, & espontâneas, & tão urbanas quanto humanas. O efeito que se produz com esse contraste é avassalador & talvez nenhum outro poeta tenha conseguido isso melhor do que o poeta beat. Seu verbo selvagem, violento, transpira ao mesmo tempo a sua erudição & as raízes vivificantes da sua poesia, de easy rider culto, de louco & de ídolo da contracultura. Os olhos de Ginsberg conseguiram entrever a ternura por traz das máscaras & engrenagens do nosso tempo, das nossas vidas. Por fim, o poeta uiva & seu uivo ecoa nos tímpanos da humanidade:

Não somos a sujeira da pele, não somos nossa locomotiva medonha triste poeirenta com ausência de imagem, nós somos todos uns lindos girassóis por dentro, somos sagrados por nossas próprias sementes & peludos pelados dourados corpos de ação virando girassóis ao crepúsculo loucos girassóis formais e negros que esses olhos espiam.

Evoé!
Marcelo Reis de Mello.    

P.S.: Aqui você lê a Sutra do Girassol na íntegra. Aqui você lê um ensaio de Claudio Willer, que também traduziu Allen Ginsberg para o português e inclusive se correspondeu com o poeta. Aqui você lê os poemas originais em inglês.

Ensaio II - Morte Minha

Gosto de pensar que o amazonense Thiago de Mello é uma espécie de Bashô tropical. Se o japonês recusou, no século XVII, a vida de samurai para escrever haikais:

casca oca
a cigarra
cantou-se toda

O amazonense deixou a medicina agora há pouco, ali no século XX, para dedicar-se também ao ofício poético. Está certo que muitos escritores se realizaram só depois de tentarem uma vida burguesa e convencional, mas acho que o Thiago me fez lembrar o lendário japonês pela delicadeza e singeleza dos seus versos, tão cândidos, ainda quando engajados, mesmo os mais políticos.

Lembro de ter comprado o seu livro "Campo de Milagres" após ler em pé na livraria Saraiva, em Curitiba, o poema "Morte minha". Nem a capa horrenda do livro (não sei como a Bertrand teve coragem de publicar uma capa daquelas) me fez recuar. Desde então, esse é um dos meus poemas de cabeceira, ao qual sempre recorro e com o qual sempre aprendo e renovo meu olhar sobre a morte, sim, a morte: minha companheira! Não citarei trechos desse poema, como fiz com a sutra do Ginsberg. E também não encontrei nada na internet, por isso não deixo um link para consulta, mas acredito que o leitor deve mesmo ir à biblioteca ou à livraria, sentir o peso e o cheiro do papel antes de mergulhar nessa pequena obra-prima.

Para não ficar sem postar algo do poeta, aqui vai o artigo IV do seu genial "Os estatutos do homem", que por sinal é uma espécie de haikai contemporâneo:

Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Evoé!
Marcelo Reis de Mello.


Ensaio III - Coisas que fazem o coração bater mais rápido

Quando eu estava na faculdade de letras, lembro de ter lido algum teórico cretino chamar o Rubem Alves de espontaneísta, como se espontaneidade fosse um defeito gravíssimo, uma má-formação congênita. E é, para os acadêmicos, os re-re-citadores de Deleuze e Foucault. Um outro francês, um tal de Antonin Artaud disse o seguinte pra essa corja: “O menor ato de criação espontânea é um mundo mais complexo e revelador que qualquer metafísica”. De fato. Acho que por isso é que eu gosto tanto do Rubem Alves até hoje, por causa do cretino que o acusou de espontaneísta.
No avião que me trouxe de volta de Curitiba ao Rio (depois de terem roubado todas as minhas malas bem no centro da "Cidade Sorriso") vim lendo um livro do Rubem, chamado "ostra feliz não faz pérola". É uma porção de anotações que ele andou fazendo e resolveu colar, montando um caleidoscópio. E esse livro me fez lembrar de um poema que o Germano me mostrou, num domingo ensolarado, escrito por uma cineasta japonesa chamada Naomi Kawase:

coisas que fazem o coração bater mais forte:

Pardais que alimentam suas crias.
Passar por algum lugar onde brincam crianças.
Dormir em um quarto onde se tenha queimado
incenso. Notar que um elegante espelho chinês está
um pouco úmido. Ver um cavalheiro que para sua
carruagem em frente ao nosso portão e ordena que
seus empregados o anunciem.
Lavar o cabelo, enfeitar-se e pôr roupas perfumadas.
Mesmo que ninguém o veja, sentimos
um prazer íntimo.

É a própria justificativa da arte. Acho que essa foi uma das maiores descobertas que o Germano fez na vida. Esse alemão é um cinéfilo do cacete e só foi entender o que significa cinema depois dessa poesia. Captar os momentos ínfimos do cotidiano, coisas que fazem o nosso coração bater mais forte. Flores mínimas. Infinínfimos.

E esse é o mesmo espontaneísmo do Rubem Alves:

Catar conchinhas…eis umadeliciosa brincadeira para quem deseja ser escritor. A alma é um grande mar que vai depositando conchinhas no pensamento. É preciso guardá-las. Quem deseja ser escritor há de aprender com as crianças a catar conchinhas, pensamentos avulsos como esses com que estou brincando, e guardá-las num caderninho. O problema com os aprendizes é que eles pensam que literatura se faz com coisas importantes. O que torna a conchinha importante não é o seu tamanho, mas o fato de que alguém a cata da areia e a mostra para quem não viu: “Veja…”. Literatura é mostrar conchinhas…

Evoé!
Marcelo Reis de Mello.

Ensaio IV - Cassiano Ricardo
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Manhã de sol. Baía da Guanabara. Mendigos e bicicletas. Velas no mar. Tiro a camisa, sento-me perto dos barcos e dos gatos, espero meu amigo Ricardo Potsch. Abro o livro de um outro Ricardo, o Cassiano, modernista de Martim Cererê, caçador solitário de papagaios inexistentes, entomologista de pequenos insetos coloridos parecidos com camafeus. A antologia que hoje carrego quem fez foi o Rubem Braga, em 1964. O poema fica melhor se lido com calma e se chama
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VOCÊ E O SEU RETRATO

Por que tenho saudade
de você, no retrato,

ainda que o mais recente?


E por que um simples retrato,
mais que você, me comove,
se você mesma está presente?


Talvez porque o retrato,
já sem o enfeite das palavras,
tenha um ar de lembrança.


Talvez porque o retrato
(exato, embora malicioso)
revele algo de criança

(como, no fundo da água,
um coral em repouso).
Talvez pela idéia de ausência
que o seu retrato faz surgir
colocado entre nós dois

(como um ramo de hortênsia).


Talvez porque o seu retrato,
embora eu me torne oblíquo,
me olha, sempre, de frente

(amorosamente)


Talvez porque o seu retrato
mais se parece com você
do que você mesma (ingrato).

Talvez porque, no retrato você está imóvel. (sem respiração...)
Talvez porque todo retrato é uma retratação.
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Abraços do fundo do
Mar.


Ensaio V - Nova lista de pequenas efemérides

Todo teatro que se preze. Um palhaço chorando. As construções de areia ou as esculturas de manteiga que uns cubanos loucos fazem no calor de Havana. O entrelaçamento de duas ou mais línguas por mais de dois segundos. Estátuas de neve. A 1ª siririca (tanto quanto a 1ª punheta). Grilos, borboletas e pássaros feitos com folhas e fiapos de palmeira. Enterrar um amigo. Chegar em casa. Receber uma carta-supresa. Diários de viagem ou de-lírios. Ter 12 anos. Entrar pelado num rio. Limpar um peixe colorido com as mãos. Matar caranguejos. Flores que brotam no asfalto. Morder um kiwi. Tocar campainha e sair correndo. Chupar jaboticaba trepado num galho bem alto. Beijar as bochechas de alguém com mais de 80 anos. Aprender um idioma estranho. Ouvir Albinoni com fones de ouvido. Lamber uma orelha. Ler enquanto se caga. Mijar no mato. Colar na prova de química. Recitar um poema pra um cego. Descobrir um bom livro antes dos amigos. Gozar dentro. Chorar que nem criança. Dar presentes sem motivo. Jogar bola. Ficar duas caipirinhas acima da linha da felicidade. Os olhos de uma grávida. Discordar. Acordar. Ver um poema pixado num muro. Incendiar um outdoor. A bunda de uma negra. Nadar à noite numa piscina fria. Estrela-cadente. Ver uma planta crescer numa bota. Passar um dia inteiro feliz.

ENSAIO VI - AMY WINEHOUSE
A despeito das críticas, quase todas idiotas ou misóginas, deixo aqui o registro da minha consternação pela morte da Amy. Uma voz preciosa, compositora de sinceridade rara, vocabulário próprio e arranjos virtuosos, tão jazzísticos que custei a acreditar que se tratava de uma menina de vinte e poucos anos e não de uma musa dos anos 50. O seu cd Back to Black é uma obra-prima sem paralelos no universo da soul music nos últimos 30 anos. Considerá-la apenas como mais uma dessas pirralhas loucas e drogadas é simplesmente uma irresponsabilidade; um erro que a história irá tratar de corrigir. Quem assistiu ao último filme do Woody Allen sabe do que estou falando; até a geração de Gauguin e Van Gogh achava que os artistas da sua época eram excrescentes. Tempo tempo tempo, canta o Caetano. Só ele é capaz de dizer o que é eterno, e até quando. You know i´m no good e Back to Black são duas pérolas incrivelmente líricas, principalmente em tempos de raps e funks e tantas outras porcarias industrializadas e merdas brancas com selo do bronx. É uma pena que artistas como a Amy Winehouse, como Jim Morrison e Janis Joplin sejam tão frágeis no meio desse lego industrificial e custem durar mais do que uns parcos 27 anos. Por outro lado, são poucos os velhos que nos deixam coisas tão absolutamente preciosas.

Evoé!
Marcelo Reis de Mello.



ENSAIO VII - AS MARGENS

Aproveito este infinínfimo arquipélago virtual para exprimir meu entusiasmo em face de dois textos quase impossíveis (de tão sublimes) e que se aparentam menos pelo gênero e mais pelo marco radical dos seus discursos. Um deles foi escolhido pela coincidente primazia, e é justamente a primeira das Primeiras Estórias do Guimarães Rosa. O segundo é a conhecida “Aula” de Roland Barthes. Tanto um quanto outro são textos bem conhecidos e re-conhecidos, já quase antigos mas complexamente atuais, por qualquer ângulo que se pretenda analisá-los, qualquer ciência.

Na “Aula”, Barthes ensina – a propósito de Jakóbson – que a linguagem e a língua não são jardins encantados, cumes da boa-fé e da liberdade, próprios dos corações anárquicos. Pelo contrário; este amigo nada ingênuo de Foucault compreende que a língua é uma tábua de leis absolutamente rígida, implacável, taliônica. Um idioma – o fascismo do idioma – diz o filósofo, “se define menos pelo que ele permite dizer e mais por aquilo que ele obriga a dizer”. Não é à toa que Barthes (como não lembrarmo-nos de Nelson Rodrigues?) sente uma aversão genuína pelas falas canônicas, pelos ditados do senso comum, pelas unanimidades ou univocidades de sentido. Na sequência da “Aula” ele propõe a instauração do jogo no interior da linguagem – isto é, propõe a literatura como subversão da língua – para que, re-significando os enunciados, seja possível divisarmos brechas insuspeitadas do real e do fantástico. Em outras palavras: a realização da fantasia. Brechas que nos libertem desse espartanismo expressivo, pois “Essa liberdade é um luxo que cada sociedade deveria proporcionar a seus cidadãos: tantas linguagens quanto desejos houver: proposta utópica, pelo fato de que nenhuma sociedade está ainda pronta para admitir que haja vários desejos”.

A literatura moderna é um in-constante estranhamento e uma constante luta com a linguagem. Às vezes luta corporal, no mano-a-mano, galo-galo; às vezes mais cerebral e refletida, educação pela pedra, cão sem plumas. Mas o fato é que essa subversão proposta por Roland Barthes aconteceu e de muitas formas. O século XX virou os idiomas pelo avesso. Faulkner escreveu “O som e a fúria”. Joyce escreveu “Finnegans Wake”. Cortázar recriou o “Jogo da Amarelinha”. E Guimarães Rosa fez do universo do homem (externo ou interno?) o seu “Grande Sertão: Veredas”. Mas como não cabe aqui e nem tenho peito para esmiuçar o epicolírico rosiano, fico no conto “As margens da alegria”, que abre as Primeiras Estórias.

É um conto magistral; é – sem titubeio – um poema. Porque não bastassem os artifícios encantatórios e os neologismos e as feitiçarias sintáticas que nos levam à descoberta de um novo idioma (como queria Barthes), a estorinha nos deixa de mãos dadas com o seu enredo simples; e através dos olhos de um menino percorremos o sítio bucólico onde será construída uma cidade: metáfora da civilização que erguemos prosaicamente nessa terra lírica. O encontro com a alegria, no conto, só é plenamente percebido no exato momento em que ela se perde e se torna impossível. Por isso, talvez, o título: “As margens da alegria”. Pois estamos sempre às margens do gozo supremo, em espiral, na superfície do desejo, na tentativa de reencarnação com o eterno que nos é sempre negado. Evito descrever o conto todo, aqui, mas dou um exemplo da sua incrível força e beleza. Partindo do ponto em que menino, ao chegar com os pais a esse lugar bucólico (onde será construída a tal cidade) fica extasiado com uma descoberta:

“Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as árvores da mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se enfujou, fazendo roda: o rapar das asas no chão – brusco, rijo, – se proclamara. Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto – o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruziou outro gluglo. O Menino riu, com todo o coração. Mas só bis-viu. Já o chamavam, para passeio.”

Pouco depois, o conto continua assim:

Tinha fome, servido o almoço, tomava-se cerveja. O Tio, a Tia, os engenheiros. Da sala, não se escutava o galhardo ralhar dele, seu grugulejo? Esta grande cidade ia ser a mais levantada no mundo. Ele abria leque, impante, explodido, se enfunava... Mal comeu dos doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne de flor. Saiu, sôfrego de o rever. Não viu: imediatamente. A mata é que era tão feia de altura. E – onde? Só umas penas, restos no chão- “Ué, se matou. Amanhã não é o dia-de-anos do doutor?” Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podia? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru-aquele. O peru-seu desaparece o espaço. Só no grão nulo de um minuto, O Menino recebia em si um miligrama de morte. Já o buscavam: - “Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago”.


Evoé!
Marcelo Reis de Mello.