Situada na rua do Brás, na altura
mais esquecida e degradada do centro da cidade, fica a loja Antiguidades do
Mundo. Os dois metros de fachada em
estilo art deco misturado com reformas modernas, incluindo a porta de enrolar
com uma pichação escrita P. Visual, espremida entre o casarão abandonado no
mesmo estilo (com restos da porta original) e uma loja de ferramentas no mais
moderno estilo caixa de sapato com vitrines de vidro por toda a fachada, é mais
conhecido como loja do seu Olavo, a loja da rua do Brás, a loja de
quinquilharias do lado da Ferramentas Universal e demais denominações oriundas
do letreiro apagado e ilegível em cima da porta de entrada.
Olavo Gusmão, dono da loja, já
acumula poeira junto de seus produtos há mais de trinta anos. O rosto de pele
enrugada, óculos de aro grosso e dois olhos pequenos, escuros e brilhantes,
conta que foi aprendiz de sapateiro na juventude, passando por vendedor de esfihas
e recepcionista de hotel. Juntou dinheiro, conhecimento e contatos necessários
para abrir seu próprio negócio e, “menos de um mês depois”, casar-se com
Adelaide de Menezes Gusmão, ambas
conquistas de seus 33 anos, “a idade em que cristo foi crucificado”. “Só não
sei qual cruz é mais pesada?” brinca seu Olavo, entre um gole de café preto sem
açúcar e uma mordiscada no pão doce que parece durar uma eternidade (após 4
médias ainda sobrará um pedaço para ser embrulhado para viagem), mas conclui de
forma apaziguadora que “uma ajuda a carregar a outra”.
Quem pensa que seu Olavo vive há 30 anos
tranquilamente, entre uma venda, uma procura, uma negociação ou um leilão ou
outro, está enganado. Sua grande paixão, desde jovem, sempre foi a literatura,
ou melhor, as estórias. “É a essência de todo conhecimento da humanidade”. Dos fundos de sua loja de antiguidades,
escondido por armários, quadros, espelhos e esculturas, com seu fiel
funcionário Osmar à frente (ou atrás) do balcão, Olavo medita, pensa e repensa
personagens, situações, construções gramaticais, estrutura enredos, envolve
leitores.
Olavo Gusmão trabalhou e manteve
por mais de 30 anos sua loja de antiguidades na rua do Brás, na parte mais
degradada e esquecida do centro. De imaginação fértil e leitor assíduo de
revistas e livros, quando jovem e funcionário de uma sapataria, criou diversas
e incríveis histórias de aventuras e ficção científica. Suas obras de
juventude, uma mistura de Julio Verne, H. G. Wells e Joseph Conrad, ficaram
para trás com a vida adulta. A batalha para guardar dinheiro, para ter tempo
para leituras e estudos consumiu as forças e a mente de Olavo até seus 35 anos
mais ou menos, quando finalmente abriu sua loja de antiguidade. Ali permaneceu
até o fim da vida. Com o negócio próprio, veio tardes de sossego a espera de
clientes, longas entresafras interrompidas por uma venda, uma compra, uma
negociação ou um leilão. Tendo Carlos, seu funcionário, à frente nos
atendimentos aos fregueses, seu Olavo ficava sentado na sua mesa, nos fundos da
loja, escondido atrás de armários, quadros, espelhos e esculturas. Ali Olavo
desvendou nuances da alma humana, criou uma série de romances e novelas
inspiradas em anos de observação dos diversos tipos humanos que teve
oportunidade de observar. Desde tempos da sapataria até a loja de antiguidades,
sempre tomando seu café ao fim do expediente na praça Santo Antonio. Observador
implacável, seu Olavo dissecava os transeuntes e demais freqüentadores do café,
analisando suas roupas, seus rostos, trejeitos. Da tragédia familiar, passando
pelo adultério, pelas amizades destruídas até o absurdo da impossibilidade da
comunicação e da falta de sentido da vida. Olavo Gusmão passou em suas obras
por todos os temas caros à condição humana. Mas tirando os recibos de venda e
compra, Olavo Gusmão não escreveu uma única linha em toda a sua vida. Suas
obras completas são compostas de 47 volumes, entre romances, novelas, ensaios
sobre literatura e antiguidade, escritos de juventude e escritos esparsos. Elas
podem ser encontradas na biblioteca do sonhar.
tradução tirada dol site da Dora
“Passei mais de um ano pensando nesse romance. Sempre que
tinha uma folga, punha-me a escrevê-lo mentalmente. Às vezes, numa viagem de
metrô, escrevia três ou quatro capítulos. Quase todo dia descartava e criava
personagens. Mas a verdade é que nunca escrevi de fato uma só palavra. O tempo
passou, outros assuntos me ocuparam. E, mesmo assim, durante alguns anos eu
freqüentemente devaneava, e nesses devaneios terminava de escrever meu romance
e o via publicado. Via o frontispício. Via a capa – verde com letras douradas.
Essas lembranças me causaram constrangimento quase insuportável, e passei a me
sentir cada vez mais solidário com Gould.
Se ele tivesse
escrito a Historia Oral, pensei, provavelmente não haveria de ser o grande
livro que andara apregoando para cima e para baixo – os grandes livros, mesmo
os meio grandes, mesmo os bons, mesmo os meio bons, são raríssimos. Na melhor
das hipóteses a História não passaria de uma curiosidade. Alguns anos depois do
lançamento estaria abarrotando as prateleiras de “Curiosidades” de todos os
sebos do país. De qualquer modo, concluí, se existe uma coisa que a raça humana
possui em abundância – em abundância e em excesso –, é livro. Quando pensei nas
cataratas de livros, nos Niágaras de livros, nos caudais de livros, nos oceanos
de livros, nas toneladas e nos caminhões e nos trens de livros que naquele
momento estavam jorrando das gráficas do mundo inteiro – e pouquíssimos dos
quais valeria a pena pegar e folhear, quem dirá ler –, comecei a achar
admirável que ele não tivesse escrito
a História Oral. Um livro a menos para
atravancar o mundo, um livro a menos para ocupar espaço e juntar poeira e
transitar, sem ser lido, da livraria para casa, da casa para o sebo, do sebo
para o brechó e de novo para outra casa ad
infinitum.”
O SEGREDO DE JOE GOULD, Joseph Mitchell, pag. 113,
Companhias das Letras.
outrora referida pelo Jean como Biblioteca de caderninhos incompletos, anotaçõess perdidas e pensamentos exparsos.
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joe gould é o cara q recebia pra não escrever, Barateza?
joe gould era um mendigo, um cara que vivia nas ruas. O Joseph Mitchell que recebia para escrever. Ele não produzia muito, mas escrevia arrebatadoramente bem.
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