A
poesia não me pede propriamente uma especialização, pois a sua arte é uma arte
do ser. Também não é tempo ou trabalho que a poesia me pede. Nem me pede uma
ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser,
uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais
pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem
lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui
uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena; pede-me que
viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e
compacta.
Pois
a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as
coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens.
Por isso o poema não fala duma vida ideal mas sim duma vida concreta: ângulo da
janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros,
aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da
noite, perfume da tília e do orégão.
É
esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação
poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato. É o
artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética.
Todo o poeta, todo o artista é artesão duma linguagem. Mas o artesanato das
artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é da relação com uma matéria, como
nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à
qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco»,
«pedra» é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com
as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram
escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pela seu poder poético de
estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que
nasce o «obstinado rigor» do poema. O verso é denso, tenso como um arco,
exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos.
O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.
E
no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu
reino, a minha vida.
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
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