Resenha do livro Conversa com Leões, de
Leonardo Marona (Editora Oitoemeio, 2012). Por Marcelo Reis de Mello.
Os felinos nem sempre foram bem compreendidos
pelos homens. Basta lembrar o terrível massacre dos gatos na França
pré-industrial, ou então ler as notícias sobre a ameaça que representamos às
onças pintadas no Brasil, ou simplesmente olhar pela janela do carro e notar os
inumeráveis bichanos mutilados pelas calçadas, nas grandes cidades, sem rabo ou
sem orelhas ou sem olhos, vagando feito pobres diabos nesse mundo cão. Por
outro lado, não são poucos os homens célebres por seu amor à genialidade
marginal dos felinos, especialmente dos pequenos gatos arruaceiros. As bem-humoradas
histórias de Julio Cortázar sobre seu gato Theodoro W. Adorno, por exemplo, são
inesquecíveis. Borges e Neruda também eram afeitos aos vira-latas indecifráveis,
dedicando-lhes doces poemas. William Burroughs, escritor seminal do movimento beat, (d)escreveu “o gato por dentro” e
Ernest Hemingway – autor mais influente tanto na vida quanto na obra de
Leonardo Marona – chegou a abrigar nada menos que 50 felinos em sua casa.
Pode-se dizer que Conversa com Leões é um diálogo vivo, ágil, sorrateiro, mas também
afetuoso, curioso, solitário e cheio de garras com estes autores e outras tantas
figuras selvagens; desde mulheres apaixonantes a um velho com quem esbarra numa
padaria, sincero demais. E se conversar com leões é colocar-se em situação de perigo,
sabe-se de antemão que os reis também terminaram decapitados. Tudo, enfim, é
infame. Por isso, a prosa que nos oferece transita entre o heroísmo fútil de construir
delicadamente o mundo e a melancolia patética de não alcançá-lo, porque a vida
continua “ali, a dez centímetros de nossos dedos. Quase podemos tocá-la. Ela
chega a nos abanar, mostra a língua. Dançamos, gritamos, nos apoiamos,
vomitamos, bebemos, sonhamos rapidamente, rimos mais um pouco da falta de
compreensão geral, e então, num belo dia, nublamos a cara e começamos a chorar
porque, de repente, nada está ali” (A barata da Finlândia p.44).
Não se trata de
um livro de contos, apesar de haver contos no livro. Em muitos dos textos o que
se nota é um hibridismo radical, principalmente nos momentos mais bem
resolvidos e provavelmente o sumo das criações mais recentes e amadurecidas do
jovem autor. Porque o seu fluxo verbal não se adequa bem à régua e ao compasso,
apesar do constante diálogo com a tradição literária. Da mesma forma que
acontece com seus autores diletos, ao Leo também não importa o fim, estático.
Importa o meio, “uma esfera infinita cujo centro está em toda parte, e a
circunferência em nenhuma”. Aliás, este famoso aforismo de Pascal poderia ter
servido de corolário aos grandes improvisadores do Jazz, como Thelonious Monk e
Charles Mingus. E não é à toa que os dois protagonizem divertidas histórias no
livro. Mingus aparece como um leão bêbado, vagabundo, genial e de temperamento
ingovernável, que manda levarem os gatos da sua casa para poder se concentrar
na trilha encomendada por John Cassavetes: – “Os gatos são seus, Charlie?”. –
“Sim, mas não sei como vieram parar aqui. Você precisa se livrar deles. Venha
agora”. E dias depois: – “Escuta, cara,
não posso trabalhar... Essa espelunca parece um consultório dentário! Tudo
muito limpo, muito arrumado! Preciso dos gatos de volta...”. Já Thelonious
Monk, figura não menos excêntrica e que atacava quase como um baterista o seu
piano, recebe de Marona um cuidado especial. Sete das oito músicas do seu disco
“Monk´s Dream” são transformadas em pequenos fragmentos que o autor recomenda
lermos com a “vitrola” ligada. É curioso que a bela e justamente última música
do álbum, “Sweet and Lovely”, tenha ficado de fora do livro. Talvez para poder
terminar com essa que é uma música de despedida: “Bye-Ya”. Ou talvez para
deixar a doçura e a ternura como uma
folha em branco, uma possibilidade em silêncio, uma porta a se abrir.
Existe um tema
que defina “Conversa com Leões”? Não. Mas há vários. Talvez fosse prudente
começar pelo amor, porque o Leo é um romântico. É uma espécie de Hemingway
afeminado, apesar da voz grossa, os gestos broncos e o corpo de lutador de boxe
aposentado. Depois eu diria que a loucura, porque o livro todo é um tanto chapado,
impressionista (quando não, surrealista) e os loucos são os que não puderam se
adaptar à ordem, os que resistem ao tédio, os trágicos, os melodramáticos
utópicos que injetam alguma paixão no mundo, pagando o preço de parecerem
patéticos. Aliás, este elemento “trans-picaresco” que é o patético, perpassa o
livro todo e significa, no fim das contas, a redenção pelo riso daquele
primeiro impulso edênico. O conto ou crônica que melhor o expressa é “A morte
de Boris Yeltsin”, um personagem avassalado a priori por um milhar de cenas
ridículas, mas que ao fim do texto recebe – pateticamente – um status de
reconhecimento e alteridade.
Mas o livro começa de outra forma. Depois de
se apresentar com algumas bofetadas metafísicas sobre o maliciosamente inútil ato
de escrever em “Os criminosos”, Marona deixa seus primeiros “Rastros do Êxodo”
em treze densos “Frissons”. Frisson, segundo o dicionário Aurélio, é sinônimo
de frêmito, arrepio. E logo se fica sabendo por que. O autor de “Conversa com
Leões” é gaúcho, um desafortunado gremista que mora no Rio de Janeiro e está em
viagem a São Paulo, apaixonado por uma mulher “superior” a quem ele chama,
evidentemente, de leoa. Talvez o momento mais instigante do livro sejam mesmo
esses fragmentos paulistanos de um discurso amoroso. Anotações em guardanapos,
recortes proustianos, crônica, poesia, filosofia aforismática e literatura
epistolar, os treze frissons são – tanto nas descrições do cenário urbano
quanto nas análises psicológicas – de uma inteligência anárquica, sincera,
desconcertante.
Depois, o livro cai no Bebop e vai parar numa festa que mistura experiências lisérgicas e
“A paixão segundo G.H.”, com a descrição de uma barata sendo espremida pelas
mãos transidas de uma finlandesa no meio de uma rave-bacanal de classe alta; uma celebração bizarra que só acaba
quando o protagonista resolve perguntar absurdamente ao seu amigo DJ por onde
anda o romantismo. De novo a busca pelo outro, o contato fugidio, o impossível
aceso pela esperança de algo que subverta a ordem natural do amor, o estado de
tédio do mundo.
“Gambito” vem na sequência e se passa durante
uma entrevista de emprego em uma livraria. Entrevista obviamente patética, com
diálogos jocosos, enganosamente simples de entender:
- Ei, aquela conversa de filosofia celta medieval é verdade?
- Não falei nada sobre filosofia celta.
- Você tem quantos graus?
- Nove e meio de miopia.
- Isso não é muito?
- É quase tudo.
- No fundo, sempre é. (p.58)
O conto desvela a
partir do contexto tão corriqueiro e ridículo de uma entrevista de emprego em
uma livraria chinfrim, uma dimensão poética do homem contemporâneo, que acaba -
sem terminar - num encontro fortuito e de influência baudelairiana: a despedida
em um ponto de ônibus.
No próximo texto, “Uma crônica sentimental”
(semelhante estilisticamente ao texto inaugural, “Os criminosos”) aparecem
quase juntas as palavras “charme” e “delicadeza”, cruciais para o autor: “Não
temos compartimentos, as guerras internas nos conduzem a um inebriante e
mentiroso estado de charme”. Pouco depois: “No fundo, nossa grande aspiração é
de sermos arrebatados por um soco firme nas ideias, o que nos faz beber
descontroladamente de uma delicadeza selvagem, felina, como o gato acuado por
uma chuva ácida: atávico e bonito crime da vida”. O charme como alternativa
estética e a delicadeza como alternativa ética à violência do mundo, à chuva
ácida que acua os gatos; bichos inquestionavelmente charmosos e delicados. Mais
uma vez a metáfora funciona. E o crime, na verdade, seria não dizer, seria não
escrever a chuva que desaba sobre os gatos; seria não denunciar com delicadeza
e charme a mão da morte que colhe, grosseira, os sonhos infantis. Em
“Procurando Hemingway”, onde se realiza fantasticamente o alter ego de Leonardo
Marona, o personagem diz a certa altura: “(...) saí correndo como um gato
recém-nascido debaixo de chuva forte”. E no conto “Última febre” conclui:
“Deve-se morrer como se fôssemos gatos que pulam da janela atrás de
borboletas”.
Tudo isso não para defender uma tese
desnecessária sobre a filiação filosófica de Marona entre os “felinistas”, mas
para ilustrar como existe um fio de Ariadne que liga os textos todos nesse livro
absolutamente heterogêneo, carnavalizante: O centro em todas as partes, a
circunferência em nenhuma. Uma cosmogonia aberta, composta por fagulhas,
fractais, pedaços de impressões, livros, discos e imagens que estalam e espalham
o universo, ao invés de trancafiá-lo na mônada segura de um conceito qualquer.
Passando por Dylan Thomas, Jack Kerouac, Tim
Buckley e Bob Dylan, mas também por Magali que não passa na porta giratória do
banco, ou daqueles encontros desvairados no “Bordello Bar”, uma casa noturna
“moderninha” da Lapa, a cidade irreal, onírica e hipócrita dos “artistas
plásticos”, da plantação de cenouras, de uma nova inquilina que só é possível
imaginar, criar, assim como a si mesmo; depois de passar por tudo isso o que
resta é a vida do próprio Leo ao lado de sua amiga Lucía, uma argentina de
dentes separados, metade real e metade realíssima, que é quem leva nosso herói
bocaberta a novas sagas amorosas, a novos tropeços medíocres, agindo como um
doce idiota, um “palhaço sem calças”. Em “Todo o peso do mundo” ele diz, depois
de descobrir o primeiro casamento careta de Hemingway com Hadley: “Aquilo
jogava por terra a minha ideia de que um bom escritor precisa se envolver,
necessariamente, com uma mulher intrigante, vivida, malévola, para sentir na
pele a evolução forçosa da vida (...)”. Mas a seguir bate na porta de Lucía,
justamente uma mulher intrigante, vivida e malévola, e sofre na pele outra
iniciação. Sua relação com as mulheres no livro, principalmente a relação com
Lucía e com seu amor platônico dos Frissons, mostra um homem sexualmente
inseguro, envolvido com mulheres fascinantes e dominantes pelo prazer de
desfrutar a dor das despedidas. Para corroborar esta tese, Lupicínio Rodrigues
é citado e não me deixa mentir.
O que fica e intensifica esta “Conversa com
Leões” é uma vontade incontrolável de sair de casa correndo, esquecer que os
livros podem ser mais divertidos do que a vida, tantas vezes, e gastar os últimos
trocados numa mesa de bar com os amigos, na Lapa ou num pé-sujo de esquina.
Literariamente, sente-se um gosto de morte, inseparável desse gozo de aventura
que a vida, pequena, patética, mas maravilhosamente delicada, transforma no
final da noite em estado de charme.
Rio de Janeiro, 29 de outubro de 2012.
m.r.mello: acabamos de ler sua resenha de Conversa com Leões e já estamos cheios de curiosidade, esperando que o livro nos desperte a vontade de sair correndo para beber com os amigos. Apreciamos laicamente a literatura e a marca que seu escrito, tão erudito, nos deixou neste momento especial, foi de lembrança do temor da perda, seu "frisson" e, simultaneamente a percepção do charme e da delicadeza cristalina do gosto da morte. Lembranças Pascais.
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