Editora Noa Noa
No final dos anos 1960, fiz uma coisa que era um velho sonho
- entrei para o Instituto Nacional do Livro (INL). Lamentavelmente, já no
período da ditadura militar, quando as coisas mudaram muito, mas era um projeto
que eu tinha há muito tempo porque ali era o celeiro de pessoas ligadas à
produção intelectual e à
manufatura do livro.
Quando adolescente, eu passava pela Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro, sede do Instituto Nacional do Livro, e via sair o Augusto
Meyer, que era na época o diretor do Instituto. Eu ficava encantado, para mim
Augusto Meyer era tão importante como é hoje um ídolo da televisão. E 1968,
entrei para o Instituto, e felizmente ainda havia muita gente boa trabalhando
lá, como Salvador Monteiro. Era muito pouco tempo depois do golpe militar,
ainda existiam muitas edições importantes em andamento. Mas já peguei um diretor do
Instituto militar, um general da reserva que era também contista, mas era mais
do que tudo um general. Trabalhei até 1974, quando as coisas mudaram de fato.
Felizmente, logo fui trabalhar na Bloch como redator. Na
Bloch, conheci o Emanuel Araújo e o auxiliei na edição de uma enciclopédia e na
Revista Geográfica. Mais tarde,
Emanuel Araújo foi contratado para fazer uma enciclopédia do Brasil e me
convidou para trabalhar na equipe dele, e então trabalhei lá até 1977.
Antes mesmo de eu entrar para o Instituto, já tinha intenção
de montar uma pequena editora. Na verdade, desde criança quis ser escritor e
fazedor de livros. Sempre pensei em montar uma pequena gráfica para fazer
livros manuais, como o tipógrafo AldusManutius do século XV, e com isso
preservar a tipografia. Tinha como modelo as edições do Manuel Segalá e do João
Cabral de Melo Neto. Na época, as edições do Manuel Segalá eram mais fáceis de
conseguir, já as do João Cabral sempre foram de mais difícil acesso.
Quando comecei, em 1965, eu não tinha impressora, então
resolvi fazer um livro totalmente escrito à mão. Foi o primeiro livro da
editora: um livro meu – 10 poemas,
ilustrado com gravuras minhas em madeira, com uma tiragem de cinquenta
exemplares. Esse livro me deu muito trabalho, mas também muita satisfação.
O nome da editora NoaNoa surgiu quando fiz o meu livro
manuscrito, que me remeteu de imediato para uma edição do NoaNoa do pintor francês Paul Gauguin. A primeira edição que tive
em mãos era uma reprodução fac-similar do manuscrito NoaNoa.
Gosto muito do Gauguin, e isso hoje tem um sabor de ranço
acadêmico, porque as pessoas gostam do pintor francês Marcel Duchamp. Gostar de
Gauguin já caracteriza alguém como antigo. É evidente que Gauguin e Duchamp são
artistas completamente diferentes. Mas o gauguin me transmitiu um prazer tão
grande na época, e transmite ainda hoje, que resolvi colocar o nome NoaNoa, que
significa “terra perfumada”, e descreve a vida do Gauguin numa ilha de Santa
Catarina. Também acho o nome NoaNoa muito sonoro.
O nome da editora NoaNoa sempre vem acompanhado de um selo,
reprodução da xilogravura de um velho amigo meu, mas nunca existiu o objetivo
de criar uma logomarca Foi um encaminhamento puramente emocional. O fato de
trabalhar sozinho dá algumas alegrias porque a gente decide tudo, mas
evidentemente eu nunca pretendi achar que acerto sempre.
Logo depois, comprei uma impressora Minerva de pedal e
alguns tipos. Comprado esse material, comecei a fazer algumas edições, pois
queria começar a trabalhar com tipografia. A tipografia, para mim, é a forma
mais nobre dos processos de impressão. Minha intenção sempre foi ter um
trabalho fixo, que desse o pão nosso de cada dia, e nas horas vagas (aos
sábados e aos domingos) fazer meus livrinhos.
Paralelamente ao esforço de preservar a tipografia, de
tentar manter viva esta arte, comecei a buscar pessoas com quem tivesse
afinidade intelectual. E como na época, mais até do que hoje, para minha
geração de autores em formação, a presença dos irmãos Campos (Augusto e
Haroldo) era muito forte, escrevi para o Augusto propondo fazermos juntos
alguma coisa. Ele me mandou, supergeneroso, sua tradução dos poemas do francês
Stéphane Mallarmé. Mallarmagem foi o
primeiro trabalho que fizemos juntos.
Toda noite eu compunha o livro. Era disciplinado, chegava do
trabalho e ia compondo um poema por dia. No dia seguinte imprimia. Fizemos o
livrinho em papel Fabriano, na época era possível isso, e teve uma boa
repercussão por vários motivos. O exótico do processo artesanal, da pequena
tiragem, a importância do autor e do tradutor. Os irmãos Campos sempre tiveram
muita força na mídia. Toda tradução do Augusto era comentada pelo Haroldo em um
suplemento importante, e com isso a editora começou a ficar conhecida. Para a
minha geração, a presença dos concretistas era muito forte. Só tendo pertencido
àquela geração para saber o que era. A maneira como eles agiam e faziam me
interessava menos do que a tradução que eles faziam. Eu tinha o maior respeito
por eles.
O que determinou o projeto editorial da editora NoaNoa, ou
seja, a escolha dos títulos, foi o meu universo como autor. Sempre decidi o que
publicar. Eu acho que os poetas concretos representaram para minha geração um
bem e um mal muito grande. Eles exerceram uma influênciamuito forte nos poetas
em formação. E eu fiz um projeto que estava perseguindo esses pontos luminosos,
que na verdade eles mostraram. A ideia era conviver mais intimamente com essa
gente para ver e entender o que eles produziam. Porque na medida em que você
trabalha nos processos de composição gráfica, principalmente os manuais, você penetra
intimamente na poesia, você está sempre com o conteúdo da composição na cabeça.
Ainda mais no processo manual de composição, se comparado ao do computador.
Tudo isso fazia parte de um processo de formação, de educação do poeta, e eu
estava no ponto. E hoje não me arrependo de nada. O Augusto mesmo disse uma
coisa muito significativa, que a poesia concreta é para ele uma corcunda com a
qual ele tem que conviver.
Fiz depois outros trabalhos que davam mais liberdade.
Editei, por exemplo, uma tradução do José Paulo Paes, uma seleção de poetas
gregos contemporâneos. Gosto do poeta mineiro Afonso Ávila, de quem editei O belo e o velho, que foi um fracasso de
venda. Outro autor com quem eu gostaria de trabalhar é o Boris Schnaiderman. Só
que a tradução de poesia no Brasil virou moeda pequena, todo o mundo está
fazendo. A tradução transcriativa dos irmãos Campos também já virou uma terra
de ninguém. Estamos hoje quase carentes do om comportamento. Está na hora de
ararmos de experimentar e fazer uma coisa sóbria e bem-feita.
Voltando ai início da editora, o segundo projeto foi a
reedição do autor e.e. cummings, que o Augusto já tinha editado pelo Ministério
da Educação. Reeditamos com mais nove poemas e aí começamos uma série de
trabalhos juntos.
A partir de 1977, aumentei a capacidade de trabalho na
editora, porque mudei para Florianópolis. Minha mulher trabalhava na Eletrosul
e a empresa dela foi transferida para cá. A mudança de uma cidade grande para
uma cidadezinha pequena como essa é uma experiência que eu gosto de contar
porque a gente costuma fantasiar muito. As pessoas que lidam com literatura,
com trabalho intelectual, idealizam a província como um espaço ideal para
produção. Tanto a província quanto a cidade grande têm suas coisas boas e más.
O difícil é a gente saber trabalhar essas coisas no lugar onde vive, porque
esse lugar ideal não existe.
Quando cheguei aqui pensei em manter o mesmo ritmo de
trabalho que tinha no rio de Janeiro. Trabalhar como jornalista as oito horas
regularmente e, à noite, me dedicar à editora. Essa foi a minha primeira
ilusão. Não havia trabalho como jornalista, e quando havia o salário era
humilhante. Então era chegada a hora de transformar a editora numa empresa
comercial. Virou uma empresa, eu virei empresário sem nenhuma experiência e
competência para lidar com o negócio. Tive que enfrentar os problemas, começou
uma outra etapa. Editei algumas obras muito interessantes e a editora foi
reconhecida.
Com o reconhecimento da editora, naturalmente muitas pessoas
me ofereceram originais e traduções. Recebo ainda hoje pessoas de todo o país e
até de fora do país. A editora é muito conhecida na Argentina, por causa da
temporada de férias dos argentinos aqui na Ilha. Muita gente boa me mandou
coisas muito interessantes, mas muito louco apareceu e me deu problemas. Há
pessoas ótimas que vêm aqui, porque essa é uma das maravilhas do livro, a
capacidade de se multiplicar. A atividade em sai me agrada muitíssima, acho uma
experiência muito rica, mas não sei se consigo manter isso. Minha relação com
os livreiros chegou ao limite do insuportável.
Durante muito tempo entrei em conflito com a linguagem do
trabalho, com o produto final, com a destinação dele e com os canais de
comercialização. No início, cheguei a fazer muitas edições em papel importado.
Mas sempre me confundi em relação à comercialização desse produto. Que produto
é esse, o que ele pretende, e coo chegar lá? Eram perguntas elementares que eu
me recusava a fazer porque, ainda com resquício do esquerdismo juvenil, eu
queria fazer com que os produtos (ainda que tivesse alguma sofisticação)
chegassem a um número maior de leitores. Isso foi uma bobagem sem tamanho, só
que ano após ano eu sabia que era bobagem, e não tinha coragem de assumir. Na
verdade, o que eu faço, o meu projeto, tem a ver com um produto para
bibliófilo.
Quando eu tinha um trabalho que me dava o pão de cada dia,
eu podia fazer o trabalho da editoria como um hobby. Mas no momento em que você
faz disso um ganha-pão, você tem que olhar de outra maneira. O ideal seria fazer
edições para bibliófilos. E com todas as características desse produto, ou
seja, com papel importado ou artesanal nacional, com ilustrações originais de
bons artistas, livros sem censura, uma tiragem de cem exemplares numerados e
assinados pelo autor. Dessa maneira é possível fugir do circuito das livrarias.
A editora tem um projeto gráfico padrão, bastante simples,
que eu criei tendo como modelo a pureza dos primeiros tipógrafos. Só há
alterações quando trabalho com um autor que tenha uma poesia inovadora – e eu
já fiz isso – ao qual eu possa dar alguma contribuição fazendo uma folha de
rosto ou uma diagramação especial, enriquecendo e transformando tudo num objeto
poético que tenha a ver com o poeta. Mas só pelo meu desejo de me mostrar
inovador não; se eu não encontrei uma sintonia, e não há necessidade, o que eu
vou fazer é dar o melhor suporta para que aquela poesia surja. Não quero ser
coautor o livro, pelo contrário, eu me preocupo em fazer da melhor maneira
possível, escolhendo o tipo ideal, a melhor diagramação, o formato do livro e o melhor papel
para impressão, e que tudo fique ideal para cada autor. Essa é a maior
preocupação que tenho quando pego um texto para fazer um projeto. Quem é esse
autor? Qual o universo dele? Como ele gostaria de ter sua obra editada? São as
perguntas que faço sempre.
Quando montei a editora, o ponto de referencia eram as
primeiras editoras, as primeiras gráficas do inicio da imprensa, quando o
editor muitas vezes eram também um tipógrafo. Eu não faço nenhum trabalho sem
uma convivência com as pessoas envolvidas no projeto. Todos os autores que
edite participaram intimamente de todo o processo de edição. Como o trabalho do
ilustrador acontece da mesma maneira: tiramos as provas e escolhemos juntos o
desenhos, ou seja, participamos da elaboração e de todas as etapas do trabalho.
Eu acho que existe uma relação íntima com autor do livro,
mesmo que ele tenha morrido há quinhentos anos, e eu me esforço para isso. Pela
própria lentidão do processo de composição manual, você quase que incorpora o
autor para que ele fique satisfeito e não se revire na tumba. E isso é uma
coisa que me dá muito prazer. Eu, sendo às vezes espírita, realmente me esforço
para que o autor esteja aqui. O autor, vivo ou morto, é que determina o formato
do livro. Nunca me preocupo com o melhor aproveitamento do papel. Escolho a
gramatura do papel, a cor, o tipo de letra, o formato do livro, imaginando
sempre que o leitor, quando pegar o livro, observará que está tudo afinado como
um orquestra.
O problema de um pequeno editor, como eu, é que ele encontra
dificuldades por todos os caminhos. É preciso encontrar aquele caminho que
permita pelo menos resolver parte do problema, que é a sobrevivência do próprio
projeto. Você sabe que te um público e quer atende-lo, porque são leitores que
te acompanham há tanto tempo. Mas não estou conseguindo mais chegar a essa
gente porque os livreiros apresentam obstáculos intransponíveis.
A grande dificuldade, o estrangulamento das pequenas
editoras, é como escoar a produção. O diálogo com os livreiros, sendo você tão
pequeno e eles podendo viver sem você, é desanimador. Os livreiros, com
raríssimas exceções, são comerciantes sem nenhuma formação específica. Se você
mostrar para um livreiro um livro composto em computador e outro composto manualmente,
elas não saberão diferenciá-los.
A produção da editora não interessa a nenhuma distribuidor
convencional. Tentei buscar soluções, mas são soluções que só trazem novos
problemas. Comecei fazendo uma tiragem em torno de 650 exemplares, às vezes
chegava a oitocentos exemplares. Depois tinha o problema de escoamento da
produção, então baixei a tiragem para trezentos exemplares. Tive então
problemas porque o preço unitário aumentava muito. No início, eu não costurava
meus livros, mas passei a costurá-los porque passei a vendê-los em livraria
para tentar um público maior. Quando se vende em livraria, ele atinge um
público que não tem esse conhecimento e sensibilidade.
Também tentei vender meus livros pelo reembolso postal, pois
quando cheguei à ilha tive várias surpresas com a província. Uma delas é que o
balcão do correio, o reembolso postal, funcionava como a maior livraria da
cidade. Passei a trabalhar com o reembolso postal e era uma maravilha. Você
mandava os livros e poucos dias depois o correio te mandava o aviso. Hoje, após
mudanças internas no correio, ele passou a ser a empresa mais sórdida do país.
Já faz um ano e meio que parei de vender para as livrarias.
Agora, editando apenas para bibliófilos, um título por semestre, eu acho que
tenho uma possibilidade de sobrevivência. Pretendo fazer livros por assinatura.
Quer dizer, você escolhe o título, planeja o livro e envia ao assinante um
cartão contendo os compromissos como o título da obra, o formato, o papel, a
impressão e preço; o assinante paga a metade antes, e quando receber paga a
outra metade. Depois de tantos anos acho que vou começar a fazer isso, porque
assim mel ivro do problema da distribuição.
Para uma editora pequena, trinta anos representam uma vida
inteira. Infelizmente pouca gente sabe a diferença entre uma editora industrial
e uma pequena. O número de publicações da editora está próximo de oitenta
títulos. Neste total estão incluídas edições calendários, gravuras, ensaios,
cartas e poemas. Editei basicamente poesia, e uma poesia sofisticada. Em todos
esses anos os autores e os tradutores receberam os direitos autorais em livros.
Eu vejo o projeto da editora como um projeto pessoal, uma
aventura pessoal. Nessa aventura, se em algum momento houve erro, não houve nenhuma
má intenção. Tentei dar aquelas coisas que você acha que podem trazer algum
prazer, algum ensinamento às pessoas que têm acesso a esse produto, e levar um
pouco de conhecimento dessa aventura humana. Creio que o trabalho de editor é
chamar atenção nessa vida tão atribulada.
Um exemplo disso é editar um poeta que existiu no século XII
e que pode ser interessante; então vamos tornar acessível. Graças a Deus existe
um tradutor para esse trabalho. Há essa tribo tão exótica que mexe com esse
universo. O homem comum pode achar dispensável isso, mas ele acha por
ignorância. Por um processo que não sei bem qual é, cada um de nós é uma
pedrinha nesse mosaico. Então vamos fazer da melhor maneira a parte que nos
cabe.
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