sábado, 17 de setembro de 2011

Infinínfimos VIII - Um Incêndio e Tanto


Hoje comprei a trilogia da húngara Agota Kristof, que a Mayla há muito tempo vem insistindo pra lermos. Sentei num banco de madeira, embaixo das árvores mais altas dos jardins do Palácio do Catete (onde costumo me retirar para certas leituras e pensamentos menos urbanos) e num tapa li "Um caderno e tanto", a primeira das três novelas que narram a formação do caráter e a saga de dois irmãos gêmeos durante uma guerra. 

É um livro perturbador. Isso a gente percebe logo nas primeiras páginas. E o estilo da srta. Kristof contribui, e muito, para que nenhum tipo de cumplicidade com os personagens seja possível, nenhuma esperança, nada, nada. É um livro de guerra - mais do que qualquer outra coisa; sobre a guerra, a loucura da guerra, a guerra dentro da gente e a guerra dentro da guerra. Quanto à linguagem, Agota Kristof é tão seca, tão nua e isenta de sentimentos quanto o Estrangeiro de Camus. Funciona. Não é exatamente o que eu tendo a buscar enquanto escritor, mas não posso evitar o choque. 

É impossível sair incólume dessa leitura, como é impossível sair incólume da novela "Sepultamento" do Eder Saragiotto, que a Cozinha Experimental está terminando de editar, como é impossível sair incólume do filme "Irreversível" ou do mais recente "Incendios", a melhor película de 2011. Aliás, seria possível traçar alguns paralelos entre a narrativa de Incendios e Um caderno e tanto. Mas enquanto no filme a curva dramática é clássica, salpicada de elementos da tragédia grega, no livro o despojamento discursivo mantém o fatalismo em sua certeza medonha, sem rodeios, linear como uma pedra atirada de um precipício, lá, onde apodrece a esperança e o amor. Em Incêndios (filme violentíssimo, hiperreal) há uma força lírica e uma potência de beleza que já se perderam na história de Agota, porque o interesse da novela é outro, embora não seja tão fácil assim apontá-lo. Talvez depois de ler os próximos dois livros da trilogia fique mais fácil identificar esse interesse, que talvez seja apenas de mostrar que a guerra exige um investimento e um treinamento de resignação extrema, de indiferença à dor e à perversidade. No filme, nenhum dos personagens chega ao cume da resignação alcançado pelos gêmeos, nem mesmo o torturador, o franco-atirador, o filho louco. 

Agota Kristof parece ter levado ao extremo o "espírito do mau" encarnado no Senhor das Moscas, clássico também meio abstruso e polêmico do inglês William Golding. No capítulo "Nossos Estudos" a autora de Um caderno e tanto expõe a sua "poética": 

Para decidir se é bom 'ou nada bom', temos uma regra muito simples: A redação deve ser verídica. Devemos descrever o que é mesmo, o que vemos, o que ouvimos, o que fazemos. Por exemplo, é proibido escrever: 'A avó parece uma bruxa'; mas é permitido escrever: 'As pessoas chamam a avó de bruxa'. É proibido escrever: 'A Cidade Pequena é bela', pois a Cidade Pequena pode ser bela para nós e feia para outros. Da mesma forma, se nós escrevemos: 'O ordenança é gentil', isto não é uma verdade, porque o ordenança é também capaz de maldades que nós ignoramos. Assim, nós escrevemos simplesmente: 'O ordenança nos dá cobertores'. 

Enfim... independentemente de comungar ou não com esse tipo de opção literária, as qualidades narrativas e a força (ainda que entrópica) de Agota Kristof merece atenção. Existe aqui uma "compaixão", em sentido literal: sofrer junto, sofrer com. Por isso acho que a Mayla estava certa. Vale demais a pena encarar essa pequena obra-prima, mas não sem os devidos cuidados para evitarmos naufragar na estética do niilismo e da desesperança que assolam invariavelmente as literaturas do pós-guerra, por motivos óbvios. Depois de ler os outros títulos da húngara, volto a comentá-la aqui, provavelmente com olhos mais felinos. E estou sempre aberto a comentários, discordantes ou afins.

Evoé,
Marcelo Reis de Mello.

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