segunda-feira, 6 de agosto de 2012

As Melhores Bibliotecas do Mundo #2: biblioteca do sonhar


Situada na rua do Brás, na altura mais esquecida e degradada do centro da cidade, fica a loja Antiguidades do Mundo.  Os dois metros de fachada em estilo art deco misturado com reformas modernas, incluindo a porta de enrolar com uma pichação escrita P. Visual, espremida entre o casarão abandonado no mesmo estilo (com restos da porta original) e uma loja de ferramentas no mais moderno estilo caixa de sapato com vitrines de vidro por toda a fachada, é mais conhecido como loja do seu Olavo, a loja da rua do Brás, a loja de quinquilharias do lado da Ferramentas Universal e demais denominações oriundas do letreiro apagado e ilegível em cima da porta de entrada.

Olavo Gusmão, dono da loja, já acumula poeira junto de seus produtos há mais de trinta anos. O rosto de pele enrugada, óculos de aro grosso e dois olhos pequenos, escuros e brilhantes, conta que foi aprendiz de sapateiro na juventude, passando por vendedor de esfihas e recepcionista de hotel. Juntou dinheiro, conhecimento e contatos necessários para abrir seu próprio negócio e, “menos de um mês depois”, casar-se com Adelaide de Menezes Gusmão,  ambas conquistas de seus 33 anos, “a idade em que cristo foi crucificado”. “Só não sei qual cruz é mais pesada?” brinca seu Olavo, entre um gole de café preto sem açúcar e uma mordiscada no pão doce que parece durar uma eternidade (após 4 médias ainda sobrará um pedaço para ser embrulhado para viagem), mas conclui de forma apaziguadora que “uma ajuda a carregar a outra”.

 Quem pensa que seu Olavo vive há 30 anos tranquilamente, entre uma venda, uma procura, uma negociação ou um leilão ou outro, está enganado. Sua grande paixão, desde jovem, sempre foi a literatura, ou melhor, as estórias. “É a essência de todo conhecimento da humanidade”.  Dos fundos de sua loja de antiguidades, escondido por armários, quadros, espelhos e esculturas, com seu fiel funcionário Osmar à frente (ou atrás) do balcão, Olavo medita, pensa e repensa personagens, situações, construções gramaticais, estrutura enredos, envolve leitores.

Olavo Gusmão trabalhou e manteve por mais de 30 anos sua loja de antiguidades na rua do Brás, na parte mais degradada e esquecida do centro. De imaginação fértil e leitor assíduo de revistas e livros, quando jovem e funcionário de uma sapataria, criou diversas e incríveis histórias de aventuras e ficção científica. Suas obras de juventude, uma mistura de Julio Verne, H. G. Wells e Joseph Conrad, ficaram para trás com a vida adulta. A batalha para guardar dinheiro, para ter tempo para leituras e estudos consumiu as forças e a mente de Olavo até seus 35 anos mais ou menos, quando finalmente abriu sua loja de antiguidade. Ali permaneceu até o fim da vida. Com o negócio próprio, veio tardes de sossego a espera de clientes, longas entresafras interrompidas por uma venda, uma compra, uma negociação ou um leilão. Tendo Carlos, seu funcionário, à frente nos atendimentos aos fregueses, seu Olavo ficava sentado na sua mesa, nos fundos da loja, escondido atrás de armários, quadros, espelhos e esculturas. Ali Olavo desvendou nuances da alma humana, criou uma série de romances e novelas inspiradas em anos de observação dos diversos tipos humanos que teve oportunidade de observar. Desde tempos da sapataria até a loja de antiguidades, sempre tomando seu café ao fim do expediente na praça Santo Antonio. Observador implacável, seu Olavo dissecava os transeuntes e demais freqüentadores do café, analisando suas roupas, seus rostos, trejeitos. Da tragédia familiar, passando pelo adultério, pelas amizades destruídas até o absurdo da impossibilidade da comunicação e da falta de sentido da vida. Olavo Gusmão passou em suas obras por todos os temas caros à condição humana. Mas tirando os recibos de venda e compra, Olavo Gusmão não escreveu uma única linha em toda a sua vida. Suas obras completas são compostas de 47 volumes, entre romances, novelas, ensaios sobre literatura e antiguidade, escritos de juventude e escritos esparsos. Elas podem ser encontradas na biblioteca do sonhar.

 tradução tirada dol site da Dora


“Passei mais de um ano pensando nesse romance. Sempre que tinha uma folga, punha-me a escrevê-lo mentalmente. Às vezes, numa viagem de metrô, escrevia três ou quatro capítulos. Quase todo dia descartava e criava personagens. Mas a verdade é que nunca escrevi de fato uma só palavra. O tempo passou, outros assuntos me ocuparam. E, mesmo assim, durante alguns anos eu freqüentemente devaneava, e nesses devaneios terminava de escrever meu romance e o via publicado. Via o frontispício. Via a capa – verde com letras douradas. Essas lembranças me causaram constrangimento quase insuportável, e passei a me sentir cada vez mais solidário com Gould.

Se ele tivesse escrito a Historia Oral, pensei, provavelmente não haveria de ser o grande livro que andara apregoando para cima e para baixo – os grandes livros, mesmo os meio grandes, mesmo os bons, mesmo os meio bons, são raríssimos. Na melhor das hipóteses a História não passaria de uma curiosidade. Alguns anos depois do lançamento estaria abarrotando as prateleiras de “Curiosidades” de todos os sebos do país. De qualquer modo, concluí, se existe uma coisa que a raça humana possui em abundância – em abundância e em excesso –, é livro. Quando pensei nas cataratas de livros, nos Niágaras de livros, nos caudais de livros, nos oceanos de livros, nas toneladas e nos caminhões e nos trens de livros que naquele momento estavam jorrando das gráficas do mundo inteiro – e pouquíssimos dos quais valeria a pena pegar e folhear, quem dirá ler –, comecei a achar admirável que ele não tivesse escrito a História Oral.  Um livro a menos para atravancar o mundo, um livro a menos para ocupar espaço e juntar poeira e transitar, sem ser lido, da livraria para casa, da casa para o sebo, do sebo para o brechó e de novo para outra casa ad infinitum.”


O SEGREDO DE JOE GOULD, Joseph Mitchell, pag. 113, Companhias das Letras.




2 comentários:

  1. outrora referida pelo Jean como Biblioteca de caderninhos incompletos, anotaçõess perdidas e pensamentos exparsos.

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    joe gould é o cara q recebia pra não escrever, Barateza?

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    1. joe gould era um mendigo, um cara que vivia nas ruas. O Joseph Mitchell que recebia para escrever. Ele não produzia muito, mas escrevia arrebatadoramente bem.

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