terça-feira, 14 de junho de 2011

Infinínfimos III - Coisas que fazem o coração bater mais forte



Quando eu estava na faculdade de letras, lembro de ter lido algum teórico cretino chamar o Rubem Alves de espontaneísta, como se espontaneidade fosse um defeito gravíssimo, uma má-formação congênita. E é, para os acadêmicos, os re-re-citadores de Deleuze e Foucault. Um outro francês, um tal de Antonin Artaud disse o seguinte pra essa corja: “O menor ato de criação espontânea é um mundo mais complexo e revelador que qualquer metafísica”. De fato. Acho que por isso é que eu gosto tanto do Rubem Alves até hoje, por causa do cretino que o acusou de espontaneísta.

No avião que me trouxe de volta de Curitiba ao Rio (depois de terem roubado todas as minhas malas bem no centro da "Cidade Sorriso") vim lendo um livro do Rubem, chamado "ostra feliz não faz pérola". É uma porção de anotações que ele andou fazendo e resolveu colar, montando um caleidoscópio. E esse livro me fez lembrar de um poema que o Germano me mostrou, num domingo ensolarado, como epígrafe no livro de uma cineasta japonesa chamada Naomi Kawase:

coisas que fazem o coração bater mais forte*

Pardais que alimentam suas crias.
Passar por algum lugar onde brincam crianças.
Dormir em um quarto onde se tenha queimado
incenso. Notar que um elegante espelho chinês está
um pouco úmido. Ver um cavalheiro que para sua
carruagem em frente ao nosso portão e ordena que
seus empregados o anunciem.
Lavar o cabelo, enfeitar-se e pôr roupas perfumadas.
Mesmo que ninguém o veja, sentimos um prazer íntimo.

É noite e se espera uma visita.
De repente nos surpreende o som das gotas de chuva
que o vento atira nas persianas.


É a própria justificativa da arte. Acho que essa foi uma das maiores descobertas que o Germano fez na vida. Esse alemão é um cinéfilo do cacete e só foi entender o que significa cinema depois dessa poesia. Captar os momentos ínfimos do cotidiano, coisas que fazem o nosso coração bater mais forte. Flores mínimas. Infinínfimos.

E esse é o mesmo espontaneísmo do Rubem Alves:

Catar conchinhas…eis umadeliciosa brincadeira para quem deseja ser escritor. A alma é um grande mar que vai depositando conchinhas no pensamento. É preciso guardá-las. Quem deseja ser escritor há de aprender com as crianças a catar conchinhas, pensamentos avulsos como esses com que estou brincando, e guardá-las num caderninho. O problema com os aprendizes é que eles pensam que literatura se faz com coisas importantes. O que torna a conchinha importante não é o seu tamanho, mas o fato de que alguém a cata da areia e a mostra para quem não viu: “Veja…”. Literatura é mostrar conchinhas…

Evoé!

Marcelo Reis de Mello.

*Esse poema é do Livro de Cabeceira de Sei Shonagon, dama da imperatriz Sadako durante os anos do sec. 10, que anotava em seu Livro de Cabeceira enumerações e listas de coisas agradáveis ou desagradáveis, "coisas odiosas", "coisas adoraveis"; "coisas que estão próximas apesar de estarem distantes".

Um comentário:

  1. que maravilha!
    quem tem sincronia não precisa de tecnologia

    teoria da errância:num contexto definido com clareza, uma procura mal sucedida de alguma coisa pode ser contrabalançada por um achado acidental, e reconhecer esse achado como possibilidade de igual valor.

    ResponderExcluir