quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Infinínfimos VII - As Margens

Aproveito este infinínfimo arquipélago virtual para exprimir meu entusiasmo em face de dois textos quase impossíveis (de tão sublimes) e que se aparentam menos pelo gênero e mais pelo marco radical dos seus discursos. Um deles foi escolhido pela coincidente primazia, e é justamente a primeira das Primeiras Estórias do Guimarães Rosa. O segundo é a conhecida “Aula” de Roland Barthes. Tanto um quanto outro são textos bem conhecidos e re-conhecidos, já quase antigos mas complexamente atuais, por qualquer ângulo que se pretenda analisá-los, qualquer ciência.

Na “Aula”, Barthes ensina – a propósito de Jakóbson – que a linguagem e a língua não são jardins encantados, cumes da boa-fé e da liberdade, próprios dos corações anárquicos. Pelo contrário; este amigo nada ingênuo de Foucault compreende que a língua é uma tábua de leis absolutamente rígida, implacável, taliônica. Um idioma – o fascismo do idioma – diz o filósofo, “se define menos pelo que ele permite dizer e mais por aquilo que ele obriga a dizer”. Não é à toa que Barthes (como não lembrarmo-nos de Nelson Rodrigues?) sente uma aversão genuína pelas falas canônicas, pelos ditados do senso comum, pelas unanimidades ou univocidades de sentido. Na sequência da “Aula” ele propõe a instauração do jogo no interior da linguagem – isto é, propõe a literatura como subversão da língua – para que, re-significando os enunciados, seja possível divisarmos brechas insuspeitadas do real e do fantástico. Em outras palavras: a realização da fantasia. Brechas que nos libertem desse espartanismo expressivo, pois “Essa liberdade é um luxo que cada sociedade deveria proporcionar a seus cidadãos: tantas linguagens quanto desejos houver: proposta utópica, pelo fato de que nenhuma sociedade está ainda pronta para admitir que haja vários desejos”.

A literatura moderna é um in-constante estranhamento e uma constante luta com a linguagem. Às vezes luta corporal, no mano-a-mano, galo-galo; às vezes mais cerebral e refletida, educação pela pedra, cão sem plumas. Mas o fato é que essa subversão proposta por Roland Barthes aconteceu e de muitas formas. O século XX virou os idiomas pelo avesso. Faulkner escreveu “O som e a fúria”. Joyce escreveu “Finnegans Wake”. Cortázar recriou o “Jogo da Amarelinha”. E Guimarães Rosa fez do universo do homem (externo ou interno?) o seu “Grande Sertão: Veredas”. Mas como não cabe aqui e nem tenho peito para esmiuçar o epicolírico rosiano, fico no conto “As margens da alegria”, que abre as Primeiras Estórias.

É um conto magistral; é – sem titubeio – um poema. Porque não bastassem os artifícios encantatórios e os neologismos e as feitiçarias sintáticas que nos levam à descoberta de um novo idioma (como queria Barthes), a estorinha nos deixa de mãos dadas com o seu enredo simples; e através dos olhos de um menino percorremos o sítio bucólico onde será construída uma cidade: metáfora da civilização que erguemos prosaicamente nessa terra lírica. O encontro com a alegria, no conto, só é plenamente percebido no exato momento em que ela se perde e se torna impossível. Por isso, talvez, o título: “As margens da alegria”. Pois estamos sempre às margens do gozo supremo, em espiral, na superfície do desejo, na tentativa de reencarnação com o eterno que nos é sempre negado. Evito descrever o conto todo, aqui, mas dou um exemplo da sua incrível força e beleza. Partindo do ponto em que menino, ao chegar com os pais a esse lugar bucólico (onde será construída a tal cidade) fica extasiado com uma descoberta:

“Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as árvores da mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se enfujou, fazendo roda: o rapar das asas no chão – brusco, rijo, – se proclamara. Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto – o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruziou outro gluglo. O Menino riu, com todo o coração. Mas só bis-viu. Já o chamavam, para passeio.”

Pouco depois, o conto continua assim:

Tinha fome, servido o almoço, tomava-se cerveja. O Tio, a Tia, os engenheiros. Da sala, não se escutava o galhardo ralhar dele, seu grugulejo? Esta grande cidade ia ser a mais levantada no mundo. Ele abria leque, impante, explodido, se enfunava... Mal comeu dos doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne de flor. Saiu, sôfrego de o rever. Não viu: imediatamente. A mata é que era tão feia de altura. E – onde? Só umas penas, restos no chão- “Ué, se matou. Amanhã não é o dia-de-anos do doutor?” Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podia? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru-aquele. O peru-seu desaparece o espaço. Só no grão nulo de um minuto, O Menino recebia em si um miligrama de morte. Já o buscavam: - “Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago”.


Evoé!
Marcelo Reis de Mello.

4 comentários:

  1. adorei, adorei o texto! como é bom ler quando alguém escreve bem! isso para mim quer dizer: claro, redondo, em ideias e palavras. não é a regra. beijo

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  2. (...)- Appy-polly-loggies. I had something of a pain in the gulliver so had to sleep. I was not awakened when I gave orders for wakening...

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  3. As I was saying, Alex, you can be instrumental in changing the public verdict. Do you understand, Alex? Have I made myself clear?

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  4. Viddy well, little brother. Viddy well.

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