quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Infinínfimos XI - Revisitando Haroldo


Nunca fui muito com a cara do Haroldo de Campos, assim, como personagem. Primeiro por conta do próprio Concretismo, já que “poesia e matemática”, “poesia tecnológica”, “poesia e Arnaldo Antunes” e etcetera nunca me pareceram boas combinações.  Sou de outra geração e por isso criei vínculos afetivos mais viscerais com escritores que eu considerava mais “apaixonados”. Mas o fato é que como todo jovem aspirante a artista, acabei tendo que engolir mais tarde a farofa da minha empáfia. Porque Haroldo não foi só um velho barbudo que arrotava em sânscrito; foi um militante feroz e um construtor empedernido da identidade cultural brasileira. Num Brasil tacanho, submisso e colonizado, a figura de Haroldo se transfunde numa espécie de demiurgo antropofágico contra os Zé Cariocas da arte e os seus brocardos tupiniquins. Haroldo era um Oswald ajuizado; seu complemento. Quer algo mais pícaro? Mais rebelde? Ao invés de levar um chicote para a porta da Academia Brasileira de Letras (e tentar lascar um vergão mundano na bunda dos imortais), Haroldo levava sua língua ferina para os Estados Unidos, e ia pra dizer que aqui não tinha só macaco, onça pintada e samba. Ele carregava sua língua-chicote pra falar de Sousândrade em Chicago. E enquanto isso traduzia Homero, Ezra Pound, Maiakovski, Joyce, Mallarmé, Dante, Octavio Paz e mais uma patota da grossa. Como disse o To Zé, o Haroldo “um dia, guiava Dante Alighieri para o limbo da língua portuguesa; no outro, atacava o hebraico para roubar uma jóia da Bíblia." Não julgo o irmão Campos no todo biográfico, mas tão só nas partes que me tocam e que conheço um pouco mais. Na semana passada comprei e li seu livro “O Seqüestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira: O caso Gregório de Matos”, onde ataca a visão do monstro sagrado Antonio Candido, para o qual a Formação da Literatura Brasileira começa pra valer só a partir Arcadismo, desprezando o Gregório, desprezando o Pe. Antonio Vieira, desprezando, enfim, todo o XVI brasileiro. Haroldo diz que é justamente pela importância da obra de Candido que se faz “merecedora não de um culto reverencial, obnubilante, mas de discussão crítica que lhe responda às instigações mais provocativas”. Essa posição marca o estilo de Haroldo de Campos, um apaixonado - a seu modo - pelos desafios intelectuais que ajudaram a repensar nossa história e nossos cânones; resgatando, descobrindo e traduzindo autores que talvez não tivessem chegado até hoje às nossas livrarias, dada a vocação de puta e puramente comercial das nossas maiores casas editoriais, com algumas agradáveis exceções. Haroldo fez com Gregório de Matos o que os espanhóis da Geração de 28 fizeram com Luis de Góngora, talvez o maior dos injustiçados de todo o período barroco, mas brilhantemente recuperado e reinterpretado por Dámaso Alonso, Garcia Lorca, Gerardo Diego e toda essa turma monstruosa. Por aqui, estávamos todos abaixando a cabeça pro mestre Candido, como se o professor não fosse um professor, mas um xamã, enquanto o Boca do Inferno era mandado - no grito - pro limbo da nossa historiografia literária. Por isso, acho que a minha antipatia pelo Haroldo se foi, como também se foi aquela primeira empáfia da juventude, onde tudo se resumia ao gosto mais imediato e desinteressado. Depois que me interessei por Haroldo, compreendi que estar certo não é tão importante quanto esta arte dialética de criar tensões; saber provocar na hora certa e, na hora certa, reconhecer que estávamos errados. Por um Brasil menos saci e culturalmente asmático, é preciso buscar entender o que de tudo isso que temos lido e vivido é – concretamente – brasileiro.

Evoé!
Marcelo Reis de Mello.

4 comentários:

  1. você escreve muito bem! sempre um prazer ler você! beijo

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  2. fico feliz de agradar a uma leitora e escritora como vc aqui na cozinha experimental, claudia. beijão!

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  3. Haroldo de Campos aprendido no amadurecimento do viver e revelado por quem olha o mundo cada vez mais do alto.
    A descoberta das relações críticas com a arte é, para mim, o máximo do que alguém pode fazer com as habilidades, que eu não confundo com talento, que é (apenas) a parte meramente mecânica das experiências adquiridas nos tempos das observações.
    Começa lá , nos primórdios da caminhada, com a crítica do gosto e, quando possível, pelo privilégio, encaminha-se para a sabedoria do experimentar.

    Continue assim e leremos, cada vez mais, seus relatos de caminhador!

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  4. é graças a topadas com caras como você, rogério, que eu procuro me reinventar e me redescobrir. e quem sabe o que eu teria feito se vc não tivesse me puxado pela mão e publicado aquele livrinho encantador com aqueles meus primeros pios semitonados, no cume solar de curitiba?

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