segunda-feira, 29 de outubro de 2012

CHOVE SOBRE OS GATOS


Resenha do livro Conversa com Leões, de Leonardo Marona (Editora Oitoemeio, 2012). Por Marcelo Reis de Mello.

Os felinos nem sempre foram bem compreendidos pelos homens. Basta lembrar o terrível massacre dos gatos na França pré-industrial, ou então ler as notícias sobre a ameaça que representamos às onças pintadas no Brasil, ou simplesmente olhar pela janela do carro e notar os inumeráveis bichanos mutilados pelas calçadas, nas grandes cidades, sem rabo ou sem orelhas ou sem olhos, vagando feito pobres diabos nesse mundo cão. Por outro lado, não são poucos os homens célebres por seu amor à genialidade marginal dos felinos, especialmente dos pequenos gatos arruaceiros. As bem-humoradas histórias de Julio Cortázar sobre seu gato Theodoro W. Adorno, por exemplo, são inesquecíveis. Borges e Neruda também eram afeitos aos vira-latas indecifráveis, dedicando-lhes doces poemas. William Burroughs, escritor seminal do movimento beat, (d)escreveu “o gato por dentro” e Ernest Hemingway – autor mais influente tanto na vida quanto na obra de Leonardo Marona – chegou a abrigar nada menos que 50 felinos em sua casa.
Pode-se dizer que Conversa com Leões é um diálogo vivo, ágil, sorrateiro, mas também afetuoso, curioso, solitário e cheio de garras com estes autores e outras tantas figuras selvagens; desde mulheres apaixonantes a um velho com quem esbarra numa padaria, sincero demais. E se conversar com leões é colocar-se em situação de perigo, sabe-se de antemão que os reis também terminaram decapitados. Tudo, enfim, é infame. Por isso, a prosa que nos oferece transita entre o heroísmo fútil de construir delicadamente o mundo e a melancolia patética de não alcançá-lo, porque a vida continua “ali, a dez centímetros de nossos dedos. Quase podemos tocá-la. Ela chega a nos abanar, mostra a língua. Dançamos, gritamos, nos apoiamos, vomitamos, bebemos, sonhamos rapidamente, rimos mais um pouco da falta de compreensão geral, e então, num belo dia, nublamos a cara e começamos a chorar porque, de repente, nada está ali” (A barata da Finlândia p.44).
            Não se trata de um livro de contos, apesar de haver contos no livro. Em muitos dos textos o que se nota é um hibridismo radical, principalmente nos momentos mais bem resolvidos e provavelmente o sumo das criações mais recentes e amadurecidas do jovem autor. Porque o seu fluxo verbal não se adequa bem à régua e ao compasso, apesar do constante diálogo com a tradição literária. Da mesma forma que acontece com seus autores diletos, ao Leo também não importa o fim, estático. Importa o meio, “uma esfera infinita cujo centro está em toda parte, e a circunferência em nenhuma”. Aliás, este famoso aforismo de Pascal poderia ter servido de corolário aos grandes improvisadores do Jazz, como Thelonious Monk e Charles Mingus. E não é à toa que os dois protagonizem divertidas histórias no livro. Mingus aparece como um leão bêbado, vagabundo, genial e de temperamento ingovernável, que manda levarem os gatos da sua casa para poder se concentrar na trilha encomendada por John Cassavetes: – “Os gatos são seus, Charlie?”. – “Sim, mas não sei como vieram parar aqui. Você precisa se livrar deles. Venha agora”.  E dias depois: – “Escuta, cara, não posso trabalhar... Essa espelunca parece um consultório dentário! Tudo muito limpo, muito arrumado! Preciso dos gatos de volta...”. Já Thelonious Monk, figura não menos excêntrica e que atacava quase como um baterista o seu piano, recebe de Marona um cuidado especial. Sete das oito músicas do seu disco “Monk´s Dream” são transformadas em pequenos fragmentos que o autor recomenda lermos com a “vitrola” ligada. É curioso que a bela e justamente última música do álbum, “Sweet and Lovely”, tenha ficado de fora do livro. Talvez para poder terminar com essa que é uma música de despedida: “Bye-Ya”. Ou talvez para deixar a doçura e a ternura como uma folha em branco, uma possibilidade em silêncio, uma porta a se abrir.
            Existe um tema que defina “Conversa com Leões”? Não. Mas há vários. Talvez fosse prudente começar pelo amor, porque o Leo é um romântico. É uma espécie de Hemingway afeminado, apesar da voz grossa, os gestos broncos e o corpo de lutador de boxe aposentado. Depois eu diria que a loucura, porque o livro todo é um tanto chapado, impressionista (quando não, surrealista) e os loucos são os que não puderam se adaptar à ordem, os que resistem ao tédio, os trágicos, os melodramáticos utópicos que injetam alguma paixão no mundo, pagando o preço de parecerem patéticos. Aliás, este elemento “trans-picaresco” que é o patético, perpassa o livro todo e significa, no fim das contas, a redenção pelo riso daquele primeiro impulso edênico. O conto ou crônica que melhor o expressa é “A morte de Boris Yeltsin”, um personagem avassalado a priori por um milhar de cenas ridículas, mas que ao fim do texto recebe – pateticamente – um status de reconhecimento e alteridade.
Mas o livro começa de outra forma. Depois de se apresentar com algumas bofetadas metafísicas sobre o maliciosamente inútil ato de escrever em “Os criminosos”, Marona deixa seus primeiros “Rastros do Êxodo” em treze densos “Frissons”. Frisson, segundo o dicionário Aurélio, é sinônimo de frêmito, arrepio. E logo se fica sabendo por que. O autor de “Conversa com Leões” é gaúcho, um desafortunado gremista que mora no Rio de Janeiro e está em viagem a São Paulo, apaixonado por uma mulher “superior” a quem ele chama, evidentemente, de leoa. Talvez o momento mais instigante do livro sejam mesmo esses fragmentos paulistanos de um discurso amoroso. Anotações em guardanapos, recortes proustianos, crônica, poesia, filosofia aforismática e literatura epistolar, os treze frissons são – tanto nas descrições do cenário urbano quanto nas análises psicológicas – de uma inteligência anárquica, sincera, desconcertante.
Depois, o livro cai no Bebop e vai parar numa festa que mistura experiências lisérgicas e “A paixão segundo G.H.”, com a descrição de uma barata sendo espremida pelas mãos transidas de uma finlandesa no meio de uma rave-bacanal de classe alta; uma celebração bizarra que só acaba quando o protagonista resolve perguntar absurdamente ao seu amigo DJ por onde anda o romantismo. De novo a busca pelo outro, o contato fugidio, o impossível aceso pela esperança de algo que subverta a ordem natural do amor, o estado de tédio do mundo.
“Gambito” vem na sequência e se passa durante uma entrevista de emprego em uma livraria. Entrevista obviamente patética, com diálogos jocosos, enganosamente simples de entender:

- Ei, aquela conversa de filosofia celta medieval é verdade?
- Não falei nada sobre filosofia celta.
- Você tem quantos graus?
- Nove e meio de miopia.
- Isso não é muito?
- É quase tudo.
- No fundo, sempre é. (p.58)

            O conto desvela a partir do contexto tão corriqueiro e ridículo de uma entrevista de emprego em uma livraria chinfrim, uma dimensão poética do homem contemporâneo, que acaba - sem terminar - num encontro fortuito e de influência baudelairiana: a despedida em um ponto de ônibus.
No próximo texto, “Uma crônica sentimental” (semelhante estilisticamente ao texto inaugural, “Os criminosos”) aparecem quase juntas as palavras “charme” e “delicadeza”, cruciais para o autor: “Não temos compartimentos, as guerras internas nos conduzem a um inebriante e mentiroso estado de charme”. Pouco depois: “No fundo, nossa grande aspiração é de sermos arrebatados por um soco firme nas ideias, o que nos faz beber descontroladamente de uma delicadeza selvagem, felina, como o gato acuado por uma chuva ácida: atávico e bonito crime da vida”. O charme como alternativa estética e a delicadeza como alternativa ética à violência do mundo, à chuva ácida que acua os gatos; bichos inquestionavelmente charmosos e delicados. Mais uma vez a metáfora funciona. E o crime, na verdade, seria não dizer, seria não escrever a chuva que desaba sobre os gatos; seria não denunciar com delicadeza e charme a mão da morte que colhe, grosseira, os sonhos infantis. Em “Procurando Hemingway”, onde se realiza fantasticamente o alter ego de Leonardo Marona, o personagem diz a certa altura: “(...) saí correndo como um gato recém-nascido debaixo de chuva forte”. E no conto “Última febre” conclui: “Deve-se morrer como se fôssemos gatos que pulam da janela atrás de borboletas”.
Tudo isso não para defender uma tese desnecessária sobre a filiação filosófica de Marona entre os “felinistas”, mas para ilustrar como existe um fio de Ariadne que liga os textos todos nesse livro absolutamente heterogêneo, carnavalizante: O centro em todas as partes, a circunferência em nenhuma. Uma cosmogonia aberta, composta por fagulhas, fractais, pedaços de impressões, livros, discos e imagens que estalam e espalham o universo, ao invés de trancafiá-lo na mônada segura de um conceito qualquer.
Passando por Dylan Thomas, Jack Kerouac, Tim Buckley e Bob Dylan, mas também por Magali que não passa na porta giratória do banco, ou daqueles encontros desvairados no “Bordello Bar”, uma casa noturna “moderninha” da Lapa, a cidade irreal, onírica e hipócrita dos “artistas plásticos”, da plantação de cenouras, de uma nova inquilina que só é possível imaginar, criar, assim como a si mesmo; depois de passar por tudo isso o que resta é a vida do próprio Leo ao lado de sua amiga Lucía, uma argentina de dentes separados, metade real e metade realíssima, que é quem leva nosso herói bocaberta a novas sagas amorosas, a novos tropeços medíocres, agindo como um doce idiota, um “palhaço sem calças”. Em “Todo o peso do mundo” ele diz, depois de descobrir o primeiro casamento careta de Hemingway com Hadley: “Aquilo jogava por terra a minha ideia de que um bom escritor precisa se envolver, necessariamente, com uma mulher intrigante, vivida, malévola, para sentir na pele a evolução forçosa da vida (...)”. Mas a seguir bate na porta de Lucía, justamente uma mulher intrigante, vivida e malévola, e sofre na pele outra iniciação. Sua relação com as mulheres no livro, principalmente a relação com Lucía e com seu amor platônico dos Frissons, mostra um homem sexualmente inseguro, envolvido com mulheres fascinantes e dominantes pelo prazer de desfrutar a dor das despedidas. Para corroborar esta tese, Lupicínio Rodrigues é citado e não me deixa mentir.
O que fica e intensifica esta “Conversa com Leões” é uma vontade incontrolável de sair de casa correndo, esquecer que os livros podem ser mais divertidos do que a vida, tantas vezes, e gastar os últimos trocados numa mesa de bar com os amigos, na Lapa ou num pé-sujo de esquina. Literariamente, sente-se um gosto de morte, inseparável desse gozo de aventura que a vida, pequena, patética, mas maravilhosamente delicada, transforma no final da noite em estado de charme.


Rio de Janeiro, 29 de outubro de 2012.

Um comentário:

  1. m.r.mello: acabamos de ler sua resenha de Conversa com Leões e já estamos cheios de curiosidade, esperando que o livro nos desperte a vontade de sair correndo para beber com os amigos. Apreciamos laicamente a literatura e a marca que seu escrito, tão erudito, nos deixou neste momento especial, foi de lembrança do temor da perda, seu "frisson" e, simultaneamente a percepção do charme e da delicadeza cristalina do gosto da morte. Lembranças Pascais.

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