sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Dois poetas sem qualidades


Resenha dos livros "Pequenos Golpes" de Giovani Baffo e "Sumo Bagaço" de Thiago Cervan, ambos lançados com o selo das Edições Maloqueirista em 2012. Por Marcelo Reis de Mello.

Thiago Cervan
Giovani Baffo
Um dos momentos mais polêmicos e frutuosos no debate sobre o lugar da poesia contemporânea foi, sem nenhuma dúvida, o lançamento em Portugal do livro “Poetas sem qualidades” (2002) com prefácio-bomba de Manuel de Freitas, estudado a partir de então como um arauto dessa nova dicção lírica. Poetas sem qualidades são para Freitas (que aí se inclui) os que escrevem dentro e a partir de um mundo também sem qualidades, reificado, mercantilizado; aqueles que não negam os influxos da linguagem publicitária ou da cultura pop, exercendo por via de um coloquialismo escarnecido as suas agonias urbanas, enfim: os que sabem que sonham sonhos com códigos de barras.
Tanto Giovani Baffo quanto Thiago Cervan são também “poetas sem qualidades”. Ambos escrevem nos seus poemas curtos a experiência da cidade e entendem a escritura como exercício identitário, onde o lirismo emerge não dos devaneios transcendentes isolados da realidade, mas da relação direta com as coisas e acontecimentos do mundo, com os livros, as mensagens publicitárias misturadas aos poemas espirituosos de Leminski, com o amor difícil dos quartinhos abafados, as palavras anotadas embaixo desta luz sem aura dos postes de mercúrio.
Não coincidentemente, os dois jovens autores publicaram recentemente pelo selo alternativo “Edições Maloqueirista”, bastante conhecido em São Paulo por quem acompanha a poesia além dos muros das universidades. Os livros são pequeninos e as tiragens são módicas, honestas, com projeto gráfico caprichoso do designer Victor Meira. A distribuição ainda é feita praticamente toda no mano-a-mano, pois os livros não recebem número de registro.
Nascido em São Paulo no ano de 1982, Giovani Baffo tem dois livros publicados. “Delitos e Deleites” (2010) e “Pequenos Golpes” (2012). Participa de diversos saraus e é o criador do belo projeto “Viela en close” nas comunidades pobres de São Paulo, onde reúne poetas, artistas de circo, músicos, performers e grafiteiros para interagir com os muros e os moradores das precariamente charmosas vielas.  Thiago Cervan nasceu em São Bernardo, no ABC paulista, em 1985. “Sumo Bagaço” foi lançado em 2012 e é seu livro de estreia. Ativista político autônomo, Cervan possui uma curiosa formação publicitária, da qual se vale para praticar sua anti-publicidade pelas ruas de Atibaia, onde vive atualmente.
Após esta breve introdução, vamos às obras. “Pequenos Golpes” é uma continuação de “Delitos e Deleites”, o livro anterior de Giovani Baffo. Daquele primeiro, os muros sujos de São Paulo ainda guardam em grafite algumas inscrições de delicados poemas, como o célebre “Em casa / de menino de rua / o último a dormir / apaga a lua” que foi parar até no programa da apresentadora Ana Maria Braga, da Rede Globo, que leu ao vivo o poema sem mencionar o autor e declarando seu anonimato, mesmo com milhares de compartilhamentos nas redes sociais atribuindo a autoria dos versos a Baffo. Mas, conhecendo a priori a incompetência ou má fé da produção desse tipo de programa, o que fica é uma espécie de reconhecimento do impacto atingido pelo poema, que extrai um lirismo brutal dessa imagem corriqueira e tão banalizada pela mídia de massa. Giovani vem demonstrar a mesma força no livro “Pequenos Golpes”, onde exercita seu olhar atento e “malandro” sobre a cidade, com esta enorme capacidade de atingir aquilo que Denilson Lopes, professor da Escola de Comunicação da UFRJ, chama de “sublime no banal”. Mas banal não significa ingênuo. E se Mário Quintana escreveu: “O luar, / é a luz do Sol que está sonhando”, Baffo vem mostrar que o céu em São Paulo é diferente:

Brilhava alta
e bela
não era a lua
era só uma janela.

E noutro poema, “Favela 2”, o célebre aforismo de Oscar Wilde: “todos nós estamos na lama, mas alguns sabem ver as estrelas” também é deslocado para um contexto de precariedade material:

Essas vielas apertadas
e sem horizonte
é o que nos põe
a olhar as estrelas...

Depreende-se desse olhar voltado às estrelas não um alheamento à impiedosa realidade que o oprime, ali, enquanto caminha pelas vielas apertadas da favela, mas pelo contrário, que esses graves problemas sociais, ou que a presença constante e incontornável da morte e da violência leva-nos (o poema está na 1ª pessoa do plural) à necessidade de voltar novamente os olhos ao céu noturno - este céu que já não sabemos decifrar como sabiam os antigos – nós, os contemporâneos, os que naufragam sem rumo e sem um sentido nesta vida entremeada de sofrimento, enquanto o comércio devora as cidades como Saturno devora seus filhos.
Mas “Pequenos Golpes” também joga com o establishment do conhecimento, geralmente usando o humor direto e sem peias de quem não frequenta os salões universitários:

filó-sofria

A cada mico
um
Acadêmico.

Passeia ainda pelo mundo das melopeias que sussurra malandra e sedutoramente, através de sinestesias e assonâncias muito simples, mas de uma ternura indiscutível:

Noite de encantos felinos
assovio entre dentes
samba azul baixinho.

Ou então:

O canto é, a cor da Cigarra
e o vento
tem sua própria jazz band.


Giovani Baffo é bom poeta por conta da capacidade de observar nas coisas simples uma potência, a latência de um espanto, e por conseguir quase sempre com êxito atingir a densidade necessária à concisão. Não há dúvida de que a linguagem do autor ainda não se realizou completamente, mas também é verdade que a linguagem em si não se realiza. Vida e escrita são processos sempre abertos. O que vale a pena é observar de perto de que maneira a poesia de Baffo irá se complexificar com o tempo, levando seu olhar perspicaz a outras dimensões. Mas que siga sempre admirando as estrelas por entre as vielas estreitas do mundo.
“Sumo Bagaço” é, como já foi dito, o livro de estreia de Thiago Cervan. Pode-se dizer também que é uma pequena compilação de jabs, que na linguagem do boxe são aqueles socos frontais dados com o punho que fica à frente na guarda; uma compilação desses versos que, quando ditos nas récitas de rua, fazem um poeta ser aclamado pelo público. Não é à toa que quando conheci o Cervan, ele tinha acabado de ganhar um “slam” de poesia em São Paulo. Para quem nunca ouviu falar, os “slams” são competições poéticas parecidas com as que há tempos acontecem entre os rappers, ou mais tradicionalmente ainda entre os repentistas nordestinos, onde, com certas regras de tempo e de tema, os poetas improvisam e procuram impressionar a plateia (ou júri popular) para vencer seus oponentes. Existem campeonatos mundiais dessa modalidade esportiva de poesia falada, e nesse tipo de ringue os poemas de Cervan são inegavelmente poderosos. Por outro lado, acontece às vezes de um poema não ser formalmente construído ou lapidado para funcionar na leitura, e isso se torna um problema quando se trata de um livro. Mas o importante é frisar que a poesia de Cervan é fundamentalmente interventiva e trabalha muitas vezes com matéria-prima ordinária, desprezada pelos escritores de verve mais ornamental; o bagaço mesmo das coisas cotidianas. E, no entanto, “Sumo Bagaço” começa com uma doce epígrafe de Belchior: “Amar e mudar as coisas”, donde já se pode depreender o duplo olhar do poeta, esperançoso no amor apesar dos pesares:

máximas
galáxias
mínimas
delícias
mãos lambuzadas
com doces carícias.

Além disso, o humor está presente em quase todos os poemas do livro e traz um pouco dessa dimensão de quem não se vê fechado em uma repartição, mas buscando brasileiramente uma proposta menos sisuda para a realização da vida. Contagiados por esse humor, podemos imaginar o poema voando ebriamente pelos ares, como um mosquito. E então ler:

O som do mosquito
quebrou o vidro
do nosso silêncio
até então

infinito.

E na sequência:

a planta
antes muda
grita
de cor

O enquadramento é no plano-detalhe, enfocando o bagaço mínimo para dele espremer seu sumo. E se não há grandiloquência, há uma eloquência contida e uma inteligência delicada que nos leva a sorrir com o canto da boca. E pra quem é da rua, umas ganas de fazer estêncil e pixar num muro branco:

dó maior
é ver o sol menor
no fundo de si.

Mas também há no livro poemas escancaradamente piadísticos, já que a ideia de Cervan não é adular o gosto fino, mas desafinar o mundo burocratizado dos “reaças”, a quem ensina: “A pós-graduação da vida é a morte”.

Faça seu sol - poema de Cervan
Assim, entre um ou outro trocadilho infame, piadas assumidas e algumas imagens muito bem construídas sobre a vida na urbe, começa a dar os seus primeiros passos com o pé direito (indo sempre à esquerda, claro) este jovem poeta do ABC. Quando começar a abandonar os caminhos mais fáceis e encontrar na potência da sua linguagem a densidade que em Giovani Baffo já aflora de uma forma mais bem resolvida, certamente virão frutos mais suculentos; um sumo ainda mais sumo desse bagaço de vida entre um trampo e um rolê, uma borrachada dos canas e uma cerveja com os amigos.
Estes são dois dos “poetas sem qualidades” de São Paulo que não encontram muito espaço nas academias, mas que no “mangueio” da luta diária mostram outros valores da poesia que os formalistas encastelados nos salões nobres acabam esquecendo-se de avaliar. Porque existe sim uma demanda por poesia nos meandros menos prováveis da cidade grande, e num botequim ou numa oficina pode haver mais vida e curiosidade pelo poder encantatório das palavras do que numa sala de aula. É preciso estudar cada vez mais para ser cada vez mais simples, e disso eles sabem muito bem. Sabem que é preciso fazer incisões na pele do mundo para que ela se abra em linguagem, porque como escreve Cervan em seu primeiro livro: “meu poema / em língua desconhecida / ainda não foi feito”.

Pequenos Golpes
Sumo Bagaço

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